Humberto de Campos no livro Crônicas
de Além-túmulo, psicografado por Chico Xavier, fala de seu encontro com o
filósofo Sócrates. Este diálogo entre Humberto de Campos e Sócrates foi
providencial para mim, suscitou boas reflexões sobre o meu trabalho. Sócrates
fala que: “Nosso projeto de difundir a felicidade na Terra só terá realização quando
os Espíritos aí encarnados deixarem de ser cidadãos para serem homens conscientes
de si mesmos.” Esta colocação mostra o quanto somos bairristas, apegados aos
papéis sociais, egocêntricos... Precisamos avançar no autodescobrimento, na
solidariedade, no universalismo. Veja na íntegra o texto:
“7 de janeiro de 1937
Foi no Instituto Celeste de Pitágoras1
que vim encontrar, nestes últimos tempos, a figura veneranda de Sócrates, o
ilustre filho de Sofronisco e Fenareta.
A reunião, nesse castelo luminoso dos
planos erráticos, era, nesse dia, dedicada a todos os estudiosos vindos da
Terra longínqua. A paisagem exterior, formada na base de substâncias imponderáveis
para as ciências terrestres da atualidade recordava a antiga Hélade, cheia de aromas,
sonoridades e melodias. Um solo de neblinas evanescentes evocava as terras suaves
e encantadoras, onde as tribos jônias e eólias localizaram a sua habitação, organizando
a pátria de Orfeu, cheia de deuses e de harmonias. Árvores bizarras e floridas enfeitavam
o ambiente de surpresas cariciosas, lembrando os antigos bosques da Tessália, onde
Pan se fazia ouvir com as cantilenas de sua flauta, protegendo os rebanhos
junto das frondes vetustas, que eram as liras dos ventos brandos, cantando as
melodias da Natureza.
O palácio consagrado a Pitágoras tinha
aspecto de severa beleza, com suas colunas gregas à maneira das maravilhosas
edificações da gloriosa Atenas do passado.
Lá dentro, agasalhava-se toda uma
multidão de Espíritos ávidos da palavra esclarecida do grande mestre, que os
cidadãos atenienses haviam condenado à morte, 399 anos antes de Jesus-Cristo.
Ali se reuniam vultos venerados pela
filosofia e pela ciência de todas as épocas humanas, Terpandro, Tucidides,
Lísis, Ésquines, Filolau, Timeu, Símias, Anaxágoras e muitas outras figuras
respeitáveis da sabedoria dos homens.
Admirei-me, porém, de não encontrar
ali nem os discípulos do sublime filósofo ateniense, nem os juízes que o
condenaram à morte. A ausência de Platão, a esse conclave do Infinito, impressionava-me
o pensamento, quando, na tribuna de claridades divinas, se materializou aos
nossos olhos o vulto venerando da filosofia de todos os séculos. Da sua figura
irradiava-se uma onda de luz levemente azulada, enchendo o recinto de vibração
desconhecida, de paz suave e branda. Grandes madeixas de cabelos alvos de neve
molduravam-lhe o semblante jovial e tranquilo, onde os olhos brilhavam
infinitamente cheios de serenidade, alegria e doçura.
As palavras de Sócrates contornaram as
teses mais sublimes, porém, inacessíveis ao entendimento das criaturas atuais,
tal a transcendência dos seus profundos raciocínios. À maneira das suas lições
nas praças públicas de Atenas, falou-nos da mais avançada sabedoria espiritual,
através de inquirições que nos conduziam ao âmago dos assuntos; discorreu sobre
a liberdade dos seres nos planos divinos que constituem a sua atual morada e
sobre os grandes conhecimentos que esperam a Humanidade terrestre no seu futuro
espiritual.
É verdade que não posso transmitir aos
meus companheiros terrenos a expressão exata dos seus ensinamentos, estribados
na mais elevada das justiças, levando-se em conta a grandeza dos seus
conceitos, incompreensíveis para as ideologias das pátrias no mundo atual, mas,
ansioso de oferecer uma palavra do grande mestre do passado aos meus irmãos, não
mais pelas vísceras do corpo e sim pelos laços afetivos da alma, atrevi-me a
abordá-lo:
- Mestre - disse eu -, venho
recentemente da Terra distante, para onde encontro possibilidade de mandar o
vosso pensamento. Desejaríeis enviar para o mundo as vossas mensagens
benevolentes e sábias?
- Seria inútil - respondeu-me
bondosamente -, os homens da Terra ainda não se reconheceram a si mesmos. Ainda
são cidadãos da pátria, sem serem irmãos entre si. Marcham uns contra os
outros, ao som de músicas guerreiras e sob a proteção de estandartes que os
desunem, aniquilando-lhes os mais nobres sentimentos de humanidade.
- Mas. . . - retorqui - lá no mundo há
uma elite de filósofos que se sentiriam orgulhosos de vos ouvir!...
- Mesmo entre eles as nossas verdades
não seriam reconhecidas. Quase todos estão com o pensamento cristalizado no
ataúde das escolas. Para todos os espíritos, o progresso reside na experiência.
A História não vos fala do suicídio orgulhoso de Empédocles de Agrigento, nas
lavas do Etna, para proporcionar aos seus contemporâneos a falsa impressão de
sua ascensão para os céus? Quase todos os estudiosos da Terra são assim; o mal
de todos é o enfatuado convencimento de sabedoria. Nossas lições valem somente
como roteiro de coragem para cada um, nos grandes momentos da experiência
individual, quase sempre difícil e dolorosa. Não crucificaram, por lá, o Filho
de Deus, que lhes oferecia a própria vida para que conhecessem e praticassem a
Verdade? O pórtico da pitonisa de Delfos está cheio de atualidade para o mundo.
Nosso projeto de difundir a felicidade na Terra só terá realização quando os
Espíritos aí encarnados deixarem de ser cidadãos para serem homens conscientes
de si mesmos. Os Estados e as Leis são invenções puramente humanas, justificáveis,
em virtude da heterogeneidade com respeito à posição evolutiva das criaturas; mas,
enquanto existirem, sobrará a certeza de que o homem não se descobriu a si
mesmo, para viver a existência espontânea e feliz, em comunhão com as disposições
divinas da natureza espiritual. A Humanidade está muito longe de compreender
essa fraternidade no campo sociológico.
Impressionado com essas respostas,
continuei a interrogá-lo:
- Apesar dos milênios decorridos,
tendes a exprimir alguma reflexão aos homens, quanto à reparação do erro que
cometeram, condenando-vos à morte?
- De modo algum. Méletos e outros
acusadores estavam no papel que lhes competia, e a ação que provocaram contra
mim nos tribunais atenienses só podia valorizar os princípios da filosofia do
bem e da liberdade que as vozes do Alto me inspiravam, para que eu fosse um dos
colaboradores na obra de quantos precederam, no Planeta, o pensamento e o
exemplo vivo de Jesus-Cristo. Se me condenaram à morte, os meus juízes estavam
igualmente condenados pela Natureza; e, até hoje, enquanto a criatura humana
não se descobrir a si mesma, os seus destinos e obras serão patrimônios da dor
e da morte.
- Poderíeis dizer algo sobre a obra
dos vossos discípulos? .
- Perfeitamente - respondeu-me o sábio
ilustre -, é de lamentar as observações mal-avisadas de Xenofonte, lamentando
eu, igualmente, que Platão, não obstante a sua coragem e o seu heroísmo, não
haja representado fielmente a minha palavra junto dos nossos contemporâneos e
dos nossos pósteros. A História admirou na sua Apologia os discursos sábios e
bem feitos, mas a minha palavra não entoaria ladainhas laudatórias aos
políticos da época e nem se desviaria para as afirmações dogmáticas no terreno
metafísico. Vivi com a minha verdade para morrer com ela. Louvo, todavia, a
Antístenes, que falou com mais imparcialidade a meu respeito, de minha
personalidade que sempre se reconheceu insuficiente. Julgáveis então que me
abalançasse, nos últimos instantes da vida, a recomendações no sentido de que
se pagasse um galo a Esculápio? Semelhante expressão, a mim atribuída,
constitui a mais incompreensível das ironias.
- Mestre, e o mundo? - indaguei.
- O mundo atual é a semente do mundo
paradisíaco do futuro. Não tenhais pressa. Mergulhando-me no labirinto da
História, parece-me que as lutas de Atenas e Esparta, as glórias do Pártenon,
os esplendores do século de Péricles, são acontecimentos de há poucos dias;
entretanto, soldados espartanos e atenienses, censores, juízes, tribunais, monumentos
políticos da cidade que foi minha pátria, estão hoje reduzidos a um punhado de
cinzas!... A nossa única realidade é a vida do Espírito.
- Não vos tentaria alguma missão de
amor na face do orbe terrestre, dentro dos grandes objetivos da regeneração
humana?
- Nossa tarefa, para que os homens se
persuadam com respeito à verdade, deve ser toda indireta. O homem terá de
realizar-se interiormente pelo trabalho perseverante, sem o que todo o esforço
dos mestres não Passará do terreno do puro verbalismo.
E, como se estivesse concentrado em si
mesmo, o,grande filósofo sentenciou:
- As criaturas humanas ainda não estão
preparadas para o amor e para a liberdade...
Durante muitos anos, ainda, todos os
discípulos da Verdade terão de morrer muitas vezes!...
E enquanto o ilustre sábio ateniense
se retirava do recinto, junto de Anaxágoras, dei por terminada a preciosa e
rara entrevista."
1 Nome convencional para figurar os
centros de grandes reuniões espirituais no plano Invisível. - O Autor
Espiritual.